POR QUE O SISTEMA ESTÁ AMEAÇADO?
Após a aprovação, o
SUAS precisava de pelo menos duas décadas de investimento
intenso para chegar a um patamar razoável de cobertura e acesso para todas as pessoas que
dele necessitam, e para que houvesse consolidação e definição das responsabilidades e
formas de intervenção, bem como para que fosse possível impactar nas novas gerações de
brasileiros e brasileiras, retirando o país do incômodo lugar de ser um dos países mais
desiguais do mundo, não só pela sua concentração de riquezas, mas também por suas
relações cotidianas violentas e discriminatórias.
Mas, a partir de 2016, esse crescimento foi sendo bruscamente interrompido em
virtude da aprovação de alteração na constituição, por meio da Emenda nº 95, que proibiu
que os investimentos de recursos na área social sejam aumentados por 20 anos.
Por essa
medida, a maioria dos deputados e deputadas federais, senadoras e senadores e a
Presidência da República decidiram que a melhor forma do Brasil economizar é deixando de
atender as necessidades da população. Essa medida foi chamada de “PEC da Morte”, porque
com o congelamento de recursos da saúde, educação, Assistência Social, habitação e
segurança, as pessoas vão precisar cada vez mais de acesso ao seu direito de proteção do
Estado, enquanto este estará destinando os recursos para cumprir compromissos com os
bancos, ou seja, para pagar juros de dívida pública. Em pouco tempo os efeitos dessa medida
já são gravemente sentidos, já que o Brasil caiu em todos os indicadores sociais nos últimos
dois anos, dentre os quais a mortalidade infantil e a violência, para ficar somente em dois
exemplos que eliminam vidas brasileiras.
Essa Emenda para a Assistência Social é ainda mais grave, porque além de retirar
recursos no momento em que o SUAS precisava de mais investimentos para se consolidar, o
Governo também não tem garantido os valores planejados anualmente e aprovados na
Câmara, ou seja, além de prever menos recursos na área, o governo não gasta e não repassa
6
tudo o que foi previsto. E para compreendermos melhor o impacto dessas medidas,
inserimos abaixo duas tabelas ilustrativas.
Na tabela 1, vemos um estudo do IPEA - um órgão do Ministério do Planejamento -
que vai mostrando como será a perda real dos recursos da Assistência Social em 20 anos, pois
além de perder recursos em virtude da queda do valor do dinheiro decorrente da inflação, o
congelamento representará um menor alcance e resultado dessa política, porque a sua
demanda aumenta com o passar dos anos e se acelera em momentos de crise.
A tabela mostra que em 10 anos a Assistência Social deixará de receber 38 bilhões, ou
seja, a Assistência será reduzida em quase 68% nesse período. Em 20 anos ela será reduzida
em 46%, ou seja, menos da metade do que é hoje e o Governo terá economizado com a vida
das pessoas que mais necessitam 94 bilhões. Essa é a PEC da Morte!!
Lembremos: o estudo
é de economistas de um órgão do governo.
Mas na Assistência Social, além de congelar o dinheiro, o Governo não repassou o
que devia aos municípios, então, temos também uma dívida no repasse, conforme se observa
na Tabela 2.
7
Tabela 2: Redução do Repasse Federal
Fonte: Colegiado Nacional de Gestores Municipais/CONGEMAS. Abril/2019.
O cenário é de muita insegurança e de descumprimento dos pilares do SUAS, como
o repasse automático fundo a fundo. São mais de 2,2 bilhões de recursos atrasados. Um
passivo que compromete a oferta de serviços e o pagamento de pessoal, já que a grande
maioria dos municípios utiliza os recursos federais para garantir o atendimento e o
acompanhamento dos usuários, ou seja, o funcionamento elementar do SUAS.
Embora o financiamento seja a face mais perversa do ataque ao SUAS, porque não
se faz política pública sem recursos financeiros, há outras medidas também que vão
mostrando que a tendência atual no Brasil não é a de investir no desenvolvimento humano e
no combate à desigualdade, mas ao contrário, é de concentrar cada vez mais a riqueza,
abandonando as pessoas à sua própria sorte.
Uma
medida que afeta muito a consolidação do SUAS é deixar de fortalecer e ampliar
os serviços. Serviços socioassistenciais são uma forma de atender as pessoas em qualquer
momento que elas precisem, são serviços continuados que devem estar à disposição dos
usuários, independentes do Governo, que não podem ser fechados e são realizados por
profissionais que, ao longo do tempo, vão tendo mais objetividade e experiência do que deve
ser feito e vão trocando conhecimentos para que esses serviços cheguem cada vez mais até
as pessoas e com mais qualidade.
Ter serviços públicos perto do cidadão e da cidadã, nas
áreas mais vulneráveis e precárias das cidades é uma direção do SUAS.
Mas o que se vê atualmente? Não se discute formas de garantir que os serviços sejam
fortalecidos e ampliados e nem se investe em qualificar o trabalho desenvolvido nessas
unidades públicas.
O Governo propõe ações voltadas às pessoas que já estão atendidas nos
8
serviços, e além disso, propõe que ao invés de profissionais especializados, sejam
contratados profissionais sem formação adequada para ensinar mulheres a cuidarem dos
seus filhos, como se esse cuidado dependesse somente de orientações e não de condições
reais, tanto materiais como emocionais e afetivas.
Em linhas gerais esse é o
Programa Criança
Feliz.
Além de ser um Programa de Governo para
atender quem já está atendido e nem ser
tipificado pelo SUAS, essa ação tira dinheiro dos serviços, porque desde 2016 é o único
repasse que está em dia e sendo ampliado, enquanto os serviços estão com recursos
atrasados, como vimos acima.
O Governo Federal tem investido e criou toda uma estrutura
para discutir esse Programa na Assistência Social. Contratou novos profissionais,
desenvolveu cartilhas e orientações, tem realizado vários encontros nos mais diversos
lugares do Brasil e várias reuniões junto aos conselhos em todos os níveis de governo. Toda
essa dedicação para quê? Para implantar um Programa que propõe ações já executadas na
saúde e na educação e o que já estava na competência do SUAS, no entanto, deixando de
ampliar e consolidar os serviços tipificados na Assistência Social.
Criança é prioridade absoluta no Brasil e as pequenas são mais ainda.
Por isso mesmo,
há maior investimento em ações especializadas na política de Educação e na Saúde e serviços
voltados às suas famílias na Assistência Social. Ter a Educação Infantil e programas de saúde
materno infantil no Brasil são um ganho recente. Mas fazer com que algumas dessas
responsabilidades sejam assumidas pela Assistência Social, sem a mesma profissionalização,
é definir uma hierarquia e seletividade entre as crianças e suas famílias: algumas terão direito
à educação especializada e à saúde e outras não terão esse direito, sendo atendidas por
profissionais de outra área como uma compensação por não terem vagas.
Isso não é priorizar
é se desresponsabilizar!
A LOAS estabelece que os serviços devem ser continuados e os programas devem
fortalecer os serviços. Em
Programas como ACESSUAS e
Programa de Combate ao Trabalho
Infantil, o papel da Assistência social está muito bem definido, assim como as atribuições das
demais políticas sociais na atuação intersetorial.
Um programa não pode se sobrepor a um
Sistema Estatal inteiro. É um retrocesso por exemplo implantar o Criança Feliz em territórios
sem serviços socioassistenciais e serviços das demais políticas públicas.
Sempre que uma ação que é de outra política pública é realizada pela Assistência
Social, essa área se enfraquece porque ela deixa de fazer aquilo que deve fazer e o que sabe
fazer, para “quebrar um galho” por não ter vagas em outras áreas.
Por isso, defender que o
tratamento de drogadição seja feito na saúde, que o atendimento de creche/educação
infantil seja feito na Educação, que a preparação de mão-de-obra seja feita pela política de
trabalho é defender que as pessoas recebam uma atenção qualificada, profissionalizada em
9
todas as políticas públicas, observando-se, inclusive, os conhecimentos científicos
produzidos nas respectivas áreas.
A Assistência Social é uma política especializada no sofrimento humano e nas vulnerabilidades que decorre da desigualdade, ao tempo em que realiza ações que impactam
nos projetos de vida, na alteração dos padrões dos vínculos sociais, nos carecimentos sociais
e econômicos, tendo em vista seu caráter de política não contributiva que deve garantir
segurança de renda.
Todos os públicos que ela atende são prioritários e vivem situações
muito graves e complexas, são pessoas abandonadas, em situação de isolamento,
discriminadas, segregadas nos lugares em que vivem, humilhadas cotidianamente,
confinadas, vivendo situações de conflito em suas casas ou nos lugares em que moram,
pessoas que sofrem vários tipos de violência, pessoas que são obrigadas a sair de suas casas
e irem para outro lugar, mulheres sozinhas que têm várias pessoas dependendo delas, enfim,
um número enorme de situações graves e complexas que as pessoas não conseguem
enfrentar sozinhas.
Deixar de investir em serviços especializados para atender esses
públicos, para fazer aquilo que outras políticas públicas já estão fazendo é outra forma de
ameaça ao SUAS e, com o tempo, é uma forma de eliminar a proteção às pessoas.
O SUAS tem viabilizado acesso a direitos e proteção social, por meio de benefícios de
caráter não contributivo, de serviços socioassistenciais, e de programas que ampliam o
alcance dessa política. Como sistema descentralizado e participativo, tem contribuído para o
fortalecimento da cidadania, de gestões democráticas, de vínculos sociais, especialmente
diante da crise contemporânea, da desigualdade histórica.
O SUAS tem ampliado
possibilidades de interrupção de ciclos de pobreza e de violências nos territórios mais
vulneráveis.
O SUAS possibilitou a implantação de uma ampla e democrática rede de proteção
social. Bem sabemos que a Assistência Social atua diretamente na complementação ou
substituição de renda, e juntamente com as demais políticas sociais e econômicas, impactou
positivamente na evolução do desenvolvimento humano, que teve uma melhoria de mais de
47% entre 1995 e 2015, segundo dados do IPEA.
Mas a atual conjuntura é marcada pela descontinuidade de políticas que atuam nos
territórios, em função dos cortes orçamentários; pelo retorno da pobreza, já que em 2014 o
Brasil tinha 7,3 milhões de pessoas que viviam na pobreza, e atualmente atingiu 21% da
população, ou seja 43,5 milhões de brasileiros; pelo aumento do desemprego, que atinge 13,1
milhões de brasileiros. Mesmo assim, as políticas econômicas não são de valorização do
salário mínimo.
A Assistência Social, aliada às políticas econômicas, impactou positivamente na vida
de milhões de famílias pobres. É inegável os resultados positivos em termos da redução da
10
pobreza, da fome, da desproteção social. Retirar políticas redistributivas vai impactar
diretamente na econômica local, na capacidade de renda das famílias e no desenvolvimento
local e regional.
O Brasil é um dos países que apresentam maior desigualdade social e são muitas as
situações complexas atendidas diariamente pelas equipes do SUAS, como trabalho infantil,
violência e desemprego da juventude e suas famílias em situação de maior vulnerabilidade
social, em territórios mais desprotegidos e precarizados. Reduzir a Assistência Social e outras
Políticas Sociais representa uma ameaça real às conquistas socais na área, além de significar
um descumprimento do pacto federativo, dos objetivos da Constituição Federal de 1988.
Significa sacrificar e penalizar a população, aprofundar a desigualdade.
Neste sentido, efetivamente já se verifica a ruptura do pacto federativo no âmbito
do SUAS, e suas consequências, no que se refere para com as corresponsabilidades dos entes
federados para com o SUAS, no que se refere ao desmonte do controle social, das mesas de
negociações e das comissões intergestores.
Apesar do cenário de retrocessos
tivemos avanços importantes na resistência. Isso
porque o SUAS tem sido também
incorporado na agenda de lutas dos movimentos sociais e
das organizações da sociedade civil, de gestores comprometidos. As ameaças tem
fortalecido
a agenda unificada das forças sociais, dos fóruns populares.
Novos atores do
SUAS têm enfrentado os cortes, atuado contra as mudanças no BPC, contra as medidas
quase diárias de retirar as famílias brasileiras dos benefícios e serviços, nesse contexto de
perda de direitos e fragilização da democracia.
Todas/os nas Conferências Municipais, Estaduais e na Conferência Nacional Democrática de
Assistência Social!
Não aceitamos nenhum retrocesso!
A Assistência Social não é favor, é direito!
Brasília, 19 de junho de 2019.
Movimento unificado em defesa da Assistência Social como
política pública, direito do cidadão e dever do Estado.